Wednesday, March 16, 2011

Lucia di Lammermoor (Gaetano Donizetti) - Metropolitan Opera (Nova Iorque) 24/02/2010


(Publicado no Outras Escritas)

Lucia di Lammermoor é talvez a ópera mais conhecida de Gaetano Donizetti e um dos pilares do período do bel canto italiano. Esta foi uma das poucas ópera de Donizetti que se manteve sempre nas temporadas líricas um pouco por toda a parte, desde o ano em que estreou (1835 Nápoles).

Até aos anos 50 do século XX, a personagem Lucia era interpretada essencialmente por sopranos ligeiros de coloratura, ou seja, por cantoras com vozes pequenas mas muito ágeis e com um registo agudo brilhante e fácil. A ópera era então considerada pouco dramática e associada apenas aos malabarismos e pirotecnias vocais das cantoras. Foi Maria Callas que iniciou uma nova forma de cantar e representar Lucia no início dos anos 50 do século XX, imprimindo à personagem a carga dramática que lhe está subjacente no libretto de Salvadore Cammarano baseado no romance "A noiva de Lammermoor" de Sir Walter Scott. Em 1959, o soprano Joan Sutherland fez catapultar a sua carreira com uma extraordinária interpretação de Lucia no Covent Garden de Londres. Joan Sutherland é para mim a melhor Lucia de sempre.


Do ponto de vista musical, Lucia di Lammermoor será porventura o expoente máximo do bel canto de Donizetti. Destaca-se, obviamente, a cena de loucura do 3º acto em que Lucia, depois de obrigada a casar com Arturo, resolve num acesso de loucura, assassiná-lo na noite de núpcias. O assassinato ocorre fora de cena, mas de seguida Lucia regressa a palco e interpreta um conjunto de árias de exigência vocal extrema, onde expressa vários estados psíquicos, que vão desde a mais pura insanidade, até à mais suave e bela alucinação.
Como é característico nas óperas de bel canto, é através da voz que se exprimem todas estas formas de estar e sentir. Os estados de maior agitação através de passagens de coloratura e os estados mais serenos através de uma linha melódica aparentemente mais simples, mas que obriga a um domínio absoluto do legatto e da beleza tímbrica.

Actualmente Lucia di Lammermoor é posta em cena com alguma frequência e interpretada sopranos ligeiros de coloratura, líricos-ligeiros e mesmo alguns spintos.

A récita do passado dia 24 de Fevereiro no MET, marcou o regresso de Natalie Dessay como Lucia, numa produção que a cantora tinha já estreado em 2007, na altura com um estrondoso sucesso. Esta produção, com encenação de Mary Zimmerman, tem voltado ao MET regularmente e está disponível em DVD mas com Anna Netrebko (que é incomparavelmente inferior a Dessay neste tipo de repertório).

O elenco foi o seguinte:

Lucia: Natalie Dessay
Edgardo: Joseph Calleja
Lord Enrico Ashton: Ludovic Tézier
Raimondo: Kwangchul Youn
Alisa: Theodora Hanslowe
Arturo: Matthew Plenk

Direcção: Patrick Summers
Encenação: Mary Zimmerman

Coro e Orquestra da Metropolitan Opera


A encenação de Zimmerman, sobejamente conhecida pelo lançamento em DVD, pareceu-me simples e extremamente eficaz. Na cena de loucura foi usada a "tradicional" escadaria que Lucia desce depois de assassinar Arturo, que produz um efeito visual forte e ajuda as cantoras na interpretação (ficou famosa a interpretação de Joan Sutherland que no final da cena se atirava pela escadaria).

Natalie Dessay é sobejamente conhecida como uma Lucia de referência. A voz, ligeira, clara e de timbre agradável adapta-se perfeitamente à partitura de Donizetti e, para além disso, a cantora é uma actriz extraordinária. Este último facto não é propriamente um elogio da minha parte, uma vez que considero  que os movimentos em palco de Dessay, muitas vezes usados em excesso, prejudicam a emissão sonora.
Na noite de 24 de Fevereiro, penso que a cantora não esteve no seu melhor no que às condições vocais diz respeito. Ao contrário do que tenho visto em gravações, pareceu-me ter estado muitas vezes com uma atitude defensiva e, por isso, pouco à vontade. Não quero dizer com isto que a interpretação não tenha sido de um nível superior, de qualquer forma, ficou abaixo das minhas expectativas (tenho como referência a sua Lucia de 2007 que ouvi através da Antena 2).
No primeiro acto, a ária Regnava nel silenzio foi interpretada sem falhas, mas denotei uma certa dificuldade no registo agudo, que poderá ter-se devido ao facto de a voz estar ainda um pouco fria. No dueto com Edgardo houve melhorias significativas, tendo sido este um dos melhores momentos da noite. 
No famoso sexteto que encerra o segundo acto, e que é um dos pontos altos da ópera, Dessay não me impressionou. Isto pode dever-se ao facto de as "Lucias" que tenho como referência, terem vozes maiores que a sua e, por isso, estar habituado a que o sexteto seja em grande parte dominado pela voz de soprano. Houve partes em que deixei de ouvir a cantora e mesmo o sobre-agudo final foi abafado pelas outras vozes.
Finalmente a cena de loucura. Aqui Dessay esteve realmente bem, demonstrando todas as suas capacidades vocais e cénicas. Gostei particularmente da interpretação de Ardon gl' incesi à qual a cantora imprimiu um carga dramática brutal. Executou tal como em 2001 toda a cadência final sem qualquer suporte orquestral (o diálogo com a flauta, foi transformado num extraordinário monólogo vocal). Todos os pontos menos bons de Dessay durante a récita foram compensados em dobro nesta parte da ópera. Curiosamente o público do MET não aplaudiu a cantora nesta altura, talvez porque tenha sido omitido o habitual mi bemol sobre-agudo. Para mim, que até aprecio bastante notas sobre-agudas, Dessay merecia um aplauso de pé. A cena termina com Spargi d'amaro pianto, aria bastante mais agitada que a anterior, esta sim com mi bemol sobre-agudo no final a que se seguiu o merecido aplauso.

A surpresa da noite foi para mim, Joseph Calleja. O tenor, cuja carreira não tenho acompanhado, tem uma voz grande, com bastante corpo e de timbre belo (denoto-lhe apenas algum de vibrato em excesso). Encheu o MET! 
A partitura de Edgardo não está escrita propriamente para um tenor ligeiro, uma vez que quase não existem quase passagens de coloratura. Calleja provou que a sua voz de tenor lírico se adapta perfeitamente a esta personagem mantendo uma prestação uniforme e de nível superior durante toda a récita. Gostaria de destacar as suas prestações soberbas no dueto com Enrico que abre o terceiro acto, que é muitas vezes omitido da ópera, e em toda a cena final também do terceiro acto. Lucia di Lammermoor coloca ao tenor que interpreta Edgardo, o desafio de ter que interpretar uma cena inteira depois da cena de loucura do soprano. Calleja venceu este desafio com distinção e foi, na minha opinião, o melhor cantor da noite.

Ludovic Tézier fez um excelente Enrico, mantendo um timbre poderoso e escuro, mesmo nas passagens mais agudas em que por vezes os barítonos tendem a deixar a voz tornar-se demasiado clara ou brilhante. Gostei da sua prestação na primeira cena do primeiro acto, mas penso que atingiu o auge no duetto com Edgardo que inicia o terceiro acto.

Kwangchul Youn fez também um excelente Raimondo, o papel mais pequeno de entre as quatro personagens principais desta ópera. O baixo, de timbre escuro e potente destacou-se no dueto com Lucia no segundo acto. Durante o sexteto a sua voz foi sempre audível, o que muitas vezes não acontece nestes casos, visto que as vozes mais agudas e vibrantes tendem a sobressair.

O Maestro Patrick Summers fez um excelente trabalho á frente da Orquestra do MET. Gostei particularmente dos tempos utilizados e da interacção da orquestra com Dessay na cena de loucura.

Devo notar que este regresso de Dessay ao MET com Lucia di Lammermoor não tem merecido as melhores críticas. Curiosamente é na parte cénica que Dessay é mais criticada, pelo facto de aparentemente estar mais "preocupada" com as câmaras de cinema (para projecção em HD noutros teatros) do que com o publico do MET. As câmaras são, a meu ver, um factor perturbador para um cantor (e encenador), uma vez que ele tem noção de que a há muitos pormenores na sua face e corpo que não são visíveis no teatro e que são acentuados numa tela cinematográfica.

Fico a aguardar com curiosidade os comentários à transmissão directa em HD que terá lugar na Gulbenkian no próximo Sábado. 

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