Sunday, March 13, 2011

Anna Bolena (Gaetano Donizetti) - Teatro del Liceu 18/02/2011

(Publicado no Outras Escritas)

Como noticiei por várias vezes aqui no Outras Escritas, no passado dia 18 de Fevereiro assisti em Barcelona a uma récita da ópera Anna Bolena de Gaetano Donizetti. Esta ópera estreou em Milão no ano de 1830 tendo como protagonista a famosa Giuditta Pasta, e foi a primeira de três ópera que o compositor dedicou às Rainhas Tudor de Inglaterra (seguiram-se Maria Stuarda 1835 e Roberto Devereux (Isabel I) 1837). O libretto é de Felice Romani e retrata a corte de Inglaterra no reinado de Henrique VIII, na altura em que a sua segunda mulher, Anna Bolena (Anne Boleyn), se vê envolvida numa série de intrigas e difamações que levam à sua condenação à morte e ao subsequente casamento do rei com Giovanna Seymour (Jane Seymour).

O elenco da récita no Liceu foi o seguinte:

Anna Bolena - Edita Gruberova
Giovanna Seymour - Elina Garanca
Enrico VIII - Simón Orfila (substituindo Carlo Colombara)
Lord Ricardo Percy - Josep Bros
Smenton - Sonia Prima
Lord Rochefort - Marc Pujol
Sir Hervey - Jon Plazaola

Direcção musical  - Andry Yurkevych
Encenação - Rafael Duran
Coro e Orquestra do Gran Teatre del Liceu

Antes de comentar os aspectos musicais, gostaria de referir que gostei da encenação do catalão Rafael Duran, que, como se vem tornando recorrente nos teatros de ópera europeus, faz uma transposição de cena para um período intemporal, mas mantém a sobriedade que o argumento exige e, muito importante, coloca os cantores em cena de forma correcta, não lhes exigindo malabarismos físicos excessivos nem os colocando em posições cénicas que prejudiquem a projecção vocal (os cantores tem que ser ouvidos pelo público, pelo que, na minha opinião, a encenação não deve prejudicar qualquer aspecto vocal). Uma escadaria dourada domina o palco e une vários patamares onde a acção decorre. A escada será palco de uma das cenas de ópera mais belas a que já assisti, como comentarei à frente.

O papel de Anna Bolena foi interpretado pelo soprano Edita Gruberova. A cantora conta com 64 anos de idade e interpreta actualmente as óperas do período do belcanto que são mais exigentes do ponto de vista vocal. Falo, entre outras, de Anna Bolena, Maria Stuarda,  Roberto Devereux e Lucrezia Borgia de Donizetti e Norma de Bellini. Qualquer umas destas óperas exige às personagens principais qualidades vocais de soprano dramático de coloratura, isto é, uma voz ágil mas com potência, amplitude e força para interpretar cenas longas e exigentes. Para além disso, não nos devemos esquecer que o Belcanto implica ainda que a voz seja bela e limpa, porque muitas vezes o suporte orquestral é diminuto e a voz fica totalmente exposta.
Edita Gruberova tem praticamente todas estas qualidades vocais (exceptua-se alguma falta de potência vocal no registo grave). Como o consegue aos 64 anos não sei, mas penso que a cantora deveria ser considerada como um caso de estudo para muitos dos novos cantores actuais que arruínam as suas vozes precocemente.


Na récita de Anna Bolena a que assisti, a cantora esteve no seu melhor. O público de Barcelona, onde se apresenta regularmente, tem por Gruberova uma dedicação especial e aplaudiu-a assim que apareceu em palco. Gruberova correspondeu e entrou de forma magnífica na primeira ária Come, innocente giovine, evidenciado todas as suas características vocais com uma técnica irrepreensível, uma coloratura soberba e uns pianíssimos que mais ninguém consegue. Depois da cabaletta Non v'ha sguardo, o teatro veio abaixo pela primeira vez com aplausos e gritos de brava. Devo notar, no entanto que o Mi bemol final, embora prolongado afinado e potente, não manteve um vibrato constante. Refiro isto apenas como pormenor, até porque penso que este facto não terá sido notado pela maioria do público presente.
Gruberova manteve um nível superior em toda a récita, mas devo confessar que esperava um pouco mais de empolgamento no dueto com Percy e no final do primeiro acto quando um julgamento é imposto por Enrico VIII a Anna Bolena. A frase Giudici... ad Anna for interpretada por Gruberova com uma carga dramática enorme, mas a parte final em que todos os cantores e coro estão em palco não me causou o impacto que eu esperava.
Um dos melhores momentos da récita ocorreu na 3ª cena do 2º acto, isto é, no dueto entre Anna e Giovanna. O dueto é longo mas com poucos momentos em que as duas personagens cantam simultaneamente, no entanto, transmite uma carga dramática enorme e tem uma linha melódica de extrema beleza quer para a voz de soprano quer para a voz de mezzo-soprano. Gruberova e Garanca (de quem falarei adiante) demonstraram uma envolvência fora do comum, e a nível vocal estiveram perfeitas. Gruberova é desafiada a interpretar notas demasiado graves para o seu registo, mas resolve muito bem a situação emitindo um som que embora possa não parecer agradável ao ouvido, aumenta a carga dramática da interpretação. O dueto termina com um Dó sobre-agudo magnificamente interpretado por ambas e que, mais uma vez levou a que o público aplaudisse efusivamente. Os aplausos foram tais, que Gruberova voltou a palco para agradecer (não vi Garanca voltar a palco, mas não tenho a certeza se a cantora o fez ou não, porque o meu lugar era lateral).
O ponto alto da récita foi, sem dúvida, a interpretação de Gruberova da ária Al dolce guidami que faz parte da enorme e difícil cena final da ópera. Gruberova, com 64 anos interpreta a ária deitada, leram bem, deitada na escadaria. A cantora fez-se aqui valer de toda a sua técnica interpretativa e brindou o público com um legatto perfeito, uns crescendos e diminuendos extraordinários, uns trilos quase tão bons como os da Sutherland (desculpem a comparação) e, sobretudo, com uns pianíssimos que parecem não ser deste mundo. Afastando-me um pouco da apreciação mais técnica e isenta que tento fazer nestes comentários, devo confessar que este foi um dos momentos mais emocionantes que já vivi numa casa de ópera e no longo aplauso que se lhe seguiu já não lhe gritei Brava, mas sim Assoluta...
Para terminar a ópera, Gruberova ainda nos brindou com a ária Coppia iniqua, mais uma vez interpretada de forma soberba e concluída com um Mi bemol sobre-agudo, afinado, prolongado, mas com um vibrato um pouco inconstante.




Giovanna Seymour foi interpretada por Elina Garanca. Confesso que ia com uma certa curiosidade  em ouvir a cantora, uma vez que as críticas que lhe são feitas nesta e noutras óperas, são sempre excelentes. Possuo apenas uma gravação em CD onde Garanca interpreta várias árias de belcanto e não acho as interpretações nada extraordinárias, principalmente no registo agudo onde a voz parece perder potência.
Esta minha avaliação tendo como base apenas um registo em CD não poderia estar mais longe da realidade.
Donizetti escreveu a partitura de Giovanna Seymour para mezzo-soprano, mas numa tessitura mais aguda que o usual para este tipo de voz. Interpretar Giovanna não está, por esta razão ao alcance de todos os mezzos, a não ser que tenham um registo agudo bem suportado. Garanca tem todas as qualidades vocais exigidas pela partitura. A voz é limpa e potente, e o timbre é belíssimo. Para além disso, a cantora não demonstrou qualquer esforço durante toda a ópera o que demonstra que possui uma técnica sólida. As qualidades vocais de elevado calibre são complementadas por uma presença física poderosa, uma vez que a cantora tem uma altura considerável e é particularmente bela.
Pontos altos da interpretação, o dueto com Gruberova que já referi atrás e que a cantora termina com o Dó sobre-agudo e a ária do segundo acto Ah! pensate che rivolti que fez realçar todas as suas qualidades vocais e cénicas. O público aplaudiu insistentemente fazendo a cantora voltar a palco para agradecer.
Garanca foi sem dúvida uma excepcional "segunda Rainha" e penso que terá muito sucesso nas suas interpretações de Viena e de Nova Iorque.



Sonia Prina, contralto, interpretou a personagem masculina de Smenton. A sua presença em palco, muito masculina e com irreverência jovial, foi perfeita. A voz tem um timbre interessante e uma qualidade que considero muito importante, não perde a cor escura no registo agudo. O problema de muitas vozes que interpretam papéis de contralto é que se tornam muito brilhantes e perdem a cor escura no registo agudo ficando a parecer mezzos (falo especificamente de contraltos de coloratura, tendo sempre como referencia Ewa Podles). Gostei particularmente das variações que Prina usou na ária do primeiro acto ah! parea che per incanto.



Simón Orfila interpretou Enrico VIII em substituição de Carlo Colombara. Confesso que me senti desapontado, uma vez que Colombara obteve boas críticas nas récitas anteriores e Orfila fará parte do segundo elenco, ou seja, acabarei por assistir a duas récitas com o mesmo baixo.
Já conheço Orfila de récitas anteriores no Liceu e no S. Carlos. A voz é potente e afinada e o timbre é razoável. No entanto, acho-o um pouco trémulo (demasiado para a sua idade) e fraco actor.
Como Enrico VIII, não esteve mal, mas senti-lhe alguma insegurança que talvez se tenha devido ao facto de estrear antes de tempo. Aguardo a récita do dia 5 de Março.



Finalmente Josep Bros. Conheço a voz do tenor catalão das récitas da Lucia e da Borgia no Liceu onde também contracenou com Gruberova. Como já referi aqui no Outras Escritas, reconheço em Bros uma certa dignidade para interpretação de repertório de belcanto, no entanto, não lhe aprecio o timbre demasiado nasal. No papel de Percy o tenor não esteve bem. Pareceu sempre nervoso e a nível cénico, muito fraco e pouco emotivo. Teve, no entanto, a coragem de interpretar a ária do segundo acto Nel veder la tua costanza, que não é nada fácil e é muitas vezes é cortada da ópera. Os agudos saíram-lhe afinados mas demasiadamente trémulos. O tenor foi aplaudido comedidamente pela maioria e vaiado insistentemente por duas ou três pessoas. Pessoalmente sou contra as vaias, se não gosto pura e simplesmente não aplaudo. Neste caso específico, acho que o cantor merece um aplauso comedido mas nunca uma vaia.


O maestro Andry Yurkevych, a Orquestra e o Coro do Liceu estiveram à altura do elenco principal.


Globalmente considero que a récita foi de qualidade elevadíssima, principalmente no que aos papéis femininos diz respeito. Garanca foi muito aplaudida no final e Gruberova foi "obrigada" a regressar a palco inúmeras vezes com uma boa parte do público a manter-se no teatro e a gritar "Edita, Edita". Num dos balcões um grupo de jovens exibiu uma tela enorme com um coração vermelho onde se podia ler "Edita, la regina solo sei tu", demonstrando o apreço que o público jovem de Barcelona tem pela cantora. Quanto a mim, Edita Gruberova foi mesmo a "Regina Assoluta" daquela noite.

Nota 1: o que se passou a seguir contarei noutro "post" com cariz mais pessoal. 
Nota 2: as fotografias dos cantores são de minha autoria.

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