(Publicado no
Outras Escritas)
A récita da ópera Armida do passado dia 23 de Fevereiro, marcou a minha estreia há muito anunciada e desejada no MET de Nova Iorque, porventura o melhor teatro de ópera do mundo (pelos menos as suas óperas contam sempre com elencos de peso, muitas vezes mais pela popularidade dos cantores do que pelas suas qualidades vocais, mas esse é um assunto que não quero discutir agora).
A ópera Armida foi composta por Rossini segundo libretto de Giovanni Schmidt. A acção decorre em Jerusalém durante as cruzadas e tem como protagonista Armida, princesa de Damasco e feiticeira. Relata o seu plano para enfraquecer os cruzados e conquistar o coração do seu líder, Rinaldo, recorrendo às mais variadas artes de feitiçaria. Rinaldo deixa-se enfeitiçar por Armida, mas no final é chamado à razão e liberta-se, indo-se juntar aos seus companheiros cruzados.
Rossini, talvez num acesso de excentricidade que lhe era característico (ainda bem! Digo eu) escreveu Armida para um elenco composto por um soprano (Armida), seis tenores (Rinaldo, Goffredo, Gernando, Eustazio, Ubaldo e Carlo) e dois baixos (Idraote e Astrarotte).
Uma ópera com seis tenores no elenco não é nada comum, e a maior parte dos teatros consegue apresentar Armida com um conjunto de quatro tenores uma vez que Goffredo, Gernando e Eustazio só estão presentes no primeiro acto e Ubaldo e Carlo no terceiro.
O MET será dos poucos teatros que consegue ter seis tenores no elenco, o que faz com que não haja cantores a interpretar duas personagens (pelo menos na récita a que assisti, nalgumas récitas de 2010 Barry Banks interpretou Gernando e Carlo).
Assim, o elenco do dia 23 de Fevereiro foi o seguinte:
Rinaldo: Lawrence Brownlee
Gernando: Antonino Siragusa
Ubaldo: Kobie van Rensburg
Estazio: Yeghishe Manucharyan
Astrarotte: David Crawford
Direcção: Riccardo Frizza
Encenação: Mary Zimmerman
Coro, Ballet e Orquestra da Metropolitan Opera
A encenação de Mary Zimmerman foi algo controversa quando a produção estreou em Abril de 2010. Durante toda a ópera é utilizada uma "parede" em forma de concha, que torna o imenso palco do MET, um pouco mais acolhedor. Falo do ponto de vista visual e vocal, uma vez que, eventualmente, este elemento em palco ajuda na projecção vocal. O Amor e a Vingança presentes ao longo de toda a ópera, são introduzidos como personagens (destaco particularmente o Amor que é apresentado como um cupido vestido de vermelho).
Globalmente, gostei da encenação reconhecendo que não é fácil, por exemplo, no segundo acto encenar o palácio dos prazeres, que Armida manda Astradotte (príncipe do inferno) construir como uma ilusão para Rinaldo.
Renée Fleming soprano americano, muitíssimo apreciado no MET, foi Armida em todas as récitas. Aliás, toda a produção foi feita para Fleming e a pedido da própria.
Do ponto de vista vocal, a cantora assume que não está dentro do repertório onde se sente mais à vontade e que encarnar Armida é para ela um desafio enorme do ponto de vista vocal.
Particularmente gosto da voz de Fleming (esta foi a primeira vez que a ouvi ao vivo). O timbre é bastante escuro e especial. Está no rol de cantores cujo timbre se identifica logo na primeira nota e isso é, para mim, uma característica vocal importante. Outra característica, que considero menos importante, é a de que Fleming é uma excelente actriz e tem, por isso, uma presença em palco muito forte.
Na récita a que assisti, a cantora esteve bem, mas não foi extraordinária. A voz não tem a maleabilidade necessária para interpretar com facilidade as difíceis passagens de coloratura, tão características das óperas de Rossini. Penso até que em certas partes, o andamento foi adaptado à voz da cantora (certamente com alguma boa vontade de Frizza).
Armida, ao contrário da maioria das óperas de Rossini, tem um número de árias reduzido, prevalecendo os duetos e tercetos. Há no entanto, a meio do segundo acto, uma ária dificílima a interpretar pelo soprano (D'amore al dolce impero). É nesta ária que as cantoras costumam demonstrar todas as suas capacidades vocais, evidenciando especialmente a agilidade nas passagens de mais difícil coloratura. Fleming, terá sido das cantoras com o timbre mais escuro que alguma vez ouvir a interpretar D'amore al dolce impero. O timbre foi um ponto em seu favor, porque imprimiu sensualidade à ária e ajudou na interpretação, no entanto a coloratura deixou muito a desejar. Claro que a cantora teve o bom senso de não introduzir variações, tão características das interpretações de Rossini. Devo notar que em alguns vídeos que existem no YouTube, a Fleming desafina nas notas mais agudas, mas que tal não se passou nesta récita.
Os duetos com Rinaldo e a parte final da ópera foram de qualidade bastante superior. Aqui a cantora, talvez por não enfrentar um desafio vocal tão elevado, pode demonstrar todas as suas capacidades de representação.
Globalmente gostei de Fleming, não a considerando obviamente uma "rossiniana" por excelência.
Rinaldo foi interpretado por outro americano, neste caso o tenor Lawrence Brownlee. O cantor tem vindo nos últimos anos a revelar-se como um especialista em Belcanto e apresenta-se regularmente em óperas de Rossini, Bellini e Donizetti. Era sobre ele que recaía a minha maior curiosidade nesta Armida e o cantor não desiludiu. Foi o melhor da noite. As características principais da voz são o timbre, ligeiro e claro, a agilidade e as notas sobre-agudas brilhantes e fácies. Rinaldo é o principal dos seis tenores de Armida e embora não tendo nenhuma ária ao longo de toda a ópera, é chamado a interpretar duetos e tercetos em que tem que liderar do ponto de vista vocal e cénico. É também o tenor cuja partitura está escrita com a tessitura mais alta e o único que intervêm em todos os actos da ópera.
Brownlee, interpretou um Rinaldo perfeito do ponto de vista vocal. Foi soberbo nos duetos com a Fleming e responsável pelo melhor momento de toda a récita que ocorreu durante o terceiro acto no terceto para três tenores. Para os apreciadores de Rossini, este terceto para tenores constituí uma obra prima do compositor, pela originalidade e beleza da partitura e pelo facto de colocar três vozes idênticas a intervir simultaneamente. Bronwlee comandou todo o terceto e ainda interpolou uma série de sobre-agudos perfeitos.
Do ponto de vista cénico, devo dizer que o cantor se fica pelo razoável e que pode melhorar significativamente a sua prestação, no entanto, o seu desempenho vocal fez-me praticamente esquecer este "pormenor", mas devo notar que, quando Fleming interpretava D'amore al dolce impero, Brownlee é atingido por uma seta do cupido e cai no chão ardendo de paixão. Por momentos, fiquei "distraído" com a má representação cénica de Brownlee, o que, me levou a não prestar atenção à voz de Fleming. Deve isto querer dizer que, nem Brownlee é bom actor, nem Fleming me cativou vocalmente nesta ária.
John Osborn interpretou a personagem Goffredo cuja intervenção se limita ao primeiro acto da ópera. Apesar deste facto, a partitura não é nada simples e exige uma voz com algum corpo, agilidade quanto baste e se possível um registo agudo seguro e brilhante. John Osborn tem todas estas qualidades. Achei a sua intervenção um pouco nervosa de início, mas foi crescendo ao longo do primeiro acto. Foi brilhante na cabaletta onde interpolou uns sobre-agudos de muito boa qualidade. Para além de todas estas características, o timbre é bastante agradável.
Divide o segundo lugar com Barry Banks, no que respeita à interpretação dos seis tenores.
Antonino Siragusa é um tenor ligeiro que me desapertava alguma curiosidade, mas que no entanto, me desiludiu como Gernando. Esta personagem também só intervém no primeiro acto, mas tem a seu cargo a que é talvez a mais "rossiniana" de todas as árias de Armida (Non soffrirò l'offesa). Para além de agilidade e um registo agudo brilhante e fácil, a ária exige um domínio absoluto do legatto, uma vez que a voz fica várias vezes totalmente exposta em passagens mais lentas. Ao Siragusa faltou volume e projecção vocal. O legatto não me emocionou.
Ubaldo e Carlo são personagens que intervêm no terceiro acto, primeiro em dueto e depois em terceto com Rinaldo. Nesta récita Ubaldo foi Kobie van Rensburg e Carlo foi Barry Banks. A partitura de Ubaldo e está escrita numa tessitura mais baixa que as de Carlo e Rinaldo, o que faz com que o registo agudo para este tenor não seja tão exigente. No entanto, o legatto e a agilidade são importantes. Kobie van Rensburg não esteve à altura. A sua voz é trémula falta-lhe agilidade e por vezes desafina. Já Barry Banks, foi excelente como Carlo. A voz é bem timbrada, ágil e com um registo agudo brilhante e fácil. Como referi, Banks divide o segundo lugar com Osborn nesta récita, aliás, o tenor em algumas récitas de 2010 interpretou simultaneamente Gernado e Carlo, e parece-me ter sido superior a Siragusa.
O sexto tenor foi Yeghishe Manucharyan e interpretou Eustazio. Esta personagem tem uma presença efémera durante o primeiro acto, que se resume praticamente a recitativo acompanhado. O tenor esteve à altura deste pequeno papel, no entanto, não lhe posso avaliar as qualidades vocais devido à sua pequena intervenção.
Também as personagens de Idraote e Astrarotte têm um papel muito secundário na ópera, resumindo-se as suas intervenções a recitativos. Peter Volpe e David Crawford (baixos) estiveram bem, mas, mais uma vez, é praticamente impossível avaliar as suas qualidades voais. Devo destacar no entanto as capacidades físicas de David Crawford, que no segundo acto se comportou como um verdadeiro bailarino, cantando em situações de equilibrio difícil e sendo elevado no ar sucessivamente por outros bailarinos.
O coro do MET esteve extraordinário. Para além de cantar, os elementos participaram activamente na encenação, confundindo-se muitas vezes com o bailarinos (coro masculino como diabos no 2º acto e como feminino como ninfas nos 2º e 3º actos).
O maestro Riccardo Frizza é um especialista em Belcanto e está muito associado a Juan Diego Flórez. A condução e articulação da orquestra com os cantores foram excelentes embora eu pense que o maestro terá feito algumas cedências no ritmo para ir de encontro às capacidades vocais de Fleming.
Uma última nota apenas para referir que achei o MET muito grande, talvez grande demais para interpretação deste tipo de repertório que exige vozes ligeiras.